“O amor é um garimpo de
diamantes estelares que deve ser explorado. Possui gemas
de diferentes qualidades e valores muito diversos. De
acordo com a coragem e a decisão de quem busca encontrar as
suas riquezas insuperáveis, sempre oferece novos matizes e
configurações especiais”.
Joanna de
Ângelis (Garimpo de Amor)
* * * * * *
Deveria ser simplesmente uma comédia.
Uma comédia onde uma jovem, após um acidente, perde a memória
curta. Ela recorda toda sua vida, até o dia do acidente, mas a
cada dia que desperta, é como se o anterior não tivesse
existido.
Pessoas com as quais contactou, coisas
que realizou, nada é recordado. É como se o tempo tivesse
parado no dia do acidente. Sequer recorda os meses de hospital
e toda a recuperação que se lhe seguiu. Absolutamente
nada.
Assim, como o dia do acidente era o dia
do aniversário de seu pai, todos os dias, ao despertar, ela
faz a mesma coisa: prepara o bolo, dá o presente, assiste o
mesmo filme em DVD, o mesmo jogo na televisão, em gravação.
Tudo, COMO SE FOSSE A PRIMEIRA VEZ.
Como tudo isso é possível? Como pode
alguém, depois de um ano, ter em sua casa ainda, tudo como se
fosse um ano atrás?
É aí que entra em cena o que move o
filme todo: O AMOR. Sim, Lucy, a personagem central, é cercada
de amor. Pelo amor do pai, do irmão, da dona da lanchonete,
que foi amiga íntima de sua mãe, do próprio cozinheiro da
lanchonete.
Um halo de projecção amorosa a cerca.
Quando ela se recolhe para dormir, a cada noite, tudo é
colocado na casa como no dia anterior. Somem os vestígios do
bolo, da festa, o presente é embrulhado exactamente da mesma
forma, outra vez.
Até a parede que ela pinta, a cada dia,
na garagem, recebe uma mão de tinta branca do pai e do irmão,
a fim de que ela, no dia seguinte, encontre tudo exactamente
igual.
Naturalmente, tudo isso é possível
graças à muita genialidade de quem escreveu, idealizou e
produziu o filme, onde foram pensados detalhes como o jornal
do dia, que o pai da garota mandou imprimir às centenas, a fim
de que, a cada dia, ela leia sempre o mesmo jornal.
Mas o halo de amor não pára aí.
Enquanto se pensa no círculo familiar, pai, irmão, a amiga
íntima da mãe, tudo bem. Mas e quando surge o
namorado?
Exactamente então é que se revela a
capacidade extraordinária do AMOR. Se ela não o pode recordar
e a cada dia ele deve tentar se aproximar para reconquistá-la,
por que não dizer a ela, a cada manhã, o que já aconteceu
entre os dois?
Ele decide fazer um vídeo para que, a
cada manhã, ao despertar, ela o possa assistir. Ele sintetiza
a sua vida nos dias posteriores ao acidente e se apresenta:
“Somos quase namorados. Conhecemo-nos assim. Você me ama e eu
amo você.”
Desta forma, ela pode ter de volta,
diariamente, a sua memória, embora não real. Afirmar que isso
seja ou não possível, que tudo aconteceria exatamente como
acontece no filme, não é questão de se examinar. Muito menos
as falhas que o filme, como toda produção cinematográfica,
apresenta. Detalhes que escapam, como não poderia ser de outra
forma, e que ocorrem a quem, enquanto assiste, fica imaginando
outras tantas eventualidades que não foram
cogitadas.
O que importa mesmo é enaltecer o AMOR
que se revela. Amor que renuncia, como a própria Lucy, que diz
ao jovem para que se afaste dela, que retome a própria vida,
que persiga os seus sonhos profissionais.
E a renúncia dela ao se internar em um
Instituto especializado em pessoas com problemas de memória,
onde os mais diversos tipos se encontram, onde ela descobre,
mesmo na sua dificuldade, uma forma de auxiliar os demais,
leccionando a sua especialidade: artes plásticas.
Contudo, o rapaz descobre que a vida
sem ela não tem sentido. E se dispõe a conquistá-la a cada
dia, a lembrá-la, através da gravação em vídeo do que
aconteceu nos dias anteriores. Algo assim como se ela
carregasse o winchester de sua memória com programas ou
sistemas actualizados e especialmente criados para
tal.
Mostra, enfim, que, para quem quer
verdadeiramente, não importa o quanto precise ser investido, o
importante é a felicidade do ser amado. Também que o fato de
se ter alguém, no lar, com uma dificuldade qualquer, não tira
ao outro a possibilidade de perseguir e alcançar os seus
sonhos.
Tudo se passa em lugar paradisíaco e
encerra em outro cenário, no meio do gelo, mas ainda e sempre
com a excelente tónica do amor. AMOR que supera a enfermidade
e busca dar ao amado o melhor, a fim de que ele possa viver o
melhor possível, embora tendo que ser recordado a cada dia, do
que fez, do que aconteceu, dos dias que estão correndo, dos
meses passados, que houve uma gravidez, uma filha, que a vida
se transformou, o mundo assistiu a tragédias e passou por
acontecimentos vários.
Quando as luzes se acendem, na sala de
projecção, e se sai para a rua, a alma está leve. Riu-se,
passaram-se 99 minutos de entretenimento. Foi um bom
relax!
Mais que tudo, no entanto, o que marca
é o AMOR. O Amor de um pai, de um irmão, de um marido, de uma
filha para sua mãe com dificuldades de memória.
Por tudo isso, decidimos escrever esta
matéria. Uma homenagem e um convite ao AMOR. Uma homenagem a
todas aquelas criaturas que convivem com familiares ou amigos
portadores de dificuldades quaisquer e que, a cada dia,
retomam as mesmas tarefas para tornar a vida do outro a mais
amena possível. Que buscam, através de variadas técnicas e
acções múltiplas, dizer ao outro, apesar dele não poder se
comunicar, ou não recordar, ou não poder participar
activamente
de todas as questões familiares: “Você continua connosco! Nós o
amamos! Estamos ao seu lado! Esta é a sua família!”
Um convite para os que têm, em seus
lares, deficientes da mente ou do corpo, que exigem pesado
investimento diário de paciência, ternura e cuidados. Um
convite para que amem, pois o AMOR faz milagres e o espírito,
embora não se possa manifestar ou apresente problemas na sua
manifestação, na vida actual, pela deficiência que o organismo
físico lhe impõe, tudo percebe e armazena em sua
intimidade.
Vale a pena investir no
AMOR!
Matéria publicada no
Jornal Mundo Espírita - março/2005 |